«Parece que alguma coisa me obrigou a partir o mundo em dois.
Deste lado os bordos são ásperos. Do outro quase transparentes.
É a primeira vez que chego sem abraços e sem razão para chegar.
Não há instantes: tudo é um tempo de horas sem números...»
Não é de agora a minha luta incessante para não me deixar vencer pelos meus próprios monstros, ansiedades, desejos não satisfeitos, falhas e contratempos. Luto para não me tornar mártir da minha própria causa já que, abandonar-me ao ritmo do vento que controla as velas dos barcos alheios, não é para mim. Cada um de nós é o que é, e mesmo que muitas vezes fosse conveniente alterar no outro aquilo que me permitiria ser mais feliz, acredito que só respeitando a essência das pessoas consigo ser verdadeiramente livre para gostar ou não delas. Houve um tempo em que, tal como provavelmente acontece com todos nós, achava que no mundo dos sentimentos bons a perfeição existia... Ninguém gosta de quem é egoísta... Ninguém gosta de quem faz chorar... Ninguém gosta de quem abandona sem olhar para trás... Ninguém gosta de quem não gosta na mesma intensidade... Assim, só gostaríamos de quem faz bem, traz serenidade e alegria para as nossas vidas. Mas como eu disse, houve um tempo; esse tempo passou e junto com ele as ilusões sobre a perfeição dos sentimentos bons. Aliás, sobre a perfeição em geral. No tempo presente existem sentimentos bons maculados por outros menos bons... Alguém sempre nos faz chorar... Alguém, em algum momento, não corresponde ao nosso afecto... Alguém pensa em si em primeiro lugar... E o amor resiste. Eu, independentemente de todas as dores que a realidade me causa, aprendo a gostar da imperfeição da essência do outro, percebo como nunca tinha percebido antes o sentido da palavra incondicionalidade. Já não acredito em vidas felizes, acredito sim que a vida é composta por momentos (mais ou menos duradouros) de felicidade. Dias em que por algum milagre ou mistério intraduzível os astros, anjos ou quem quer que seja permitem que "Hoje seja um dia bom". Amanhã? Amanhã nunca se sabe para onde soprará o vento.